O Bóson de Higgs e a destruição do Universo: O fim da humanidade está próximo?

Resolvi fazer como os jornalistas e escrever um título bem sensacionalista para ver se mais pessoas clicam. Se você tá com muita preguiça de ler o texto todo aqui vai um resumo: Não, o bóson de Higgs não vai destruir o universo, nem a Terra, nem nada.

(Se você quiser um resumo melhor que uma frase pode pular para o final do texto).

De qualquer forma, as vezes desanimo de escrever no blog mas basta ver jornalistas escrevendo merda sobre física que todo o ódio vira motivação. E como sempre, a receita é simples: bata no liquidificador algo como destruição do universo,  partícula de deus  bóson de Higgs e algum cientista famoso (Hawking costuma ser um ingrediente frequente). Pronto, agora é só divulgar bastante e ver os comentários extraordinários que saem disso tudo.

Então, venho nesse humilde blog tentar quebrar o ciclo do “você finge que me explica e eu finjo que entendo”. Vou tentar simplificar sem falar muita besteira e espero que você se esforce um pouquinho para tentar entender. E como diria o César, na vida sucesso é sofrimento, então o post será longo.

  • Partículas e Campos

Vamos começar do começo: como descrevemos partículas? Quando alguém te fala ‘pensa em um elétron’, aposto que a primeira coisa que vem na sua cabeça é uma bolinha com uma carinha feliz. Essa descrição funcionava muito bem, era uma analogia clara ao sistema solar, onde se tinha um núcleo e seus elétrons orbitando. Porém, a física evolui um bocado desde o modelo atômico de Rutherford e hoje sabemos que na verdade as coisas não são bem assim.

 

Você pode comprar partículas de pelúcia no site do Particle Zoo.

Você pode comprar partículas de pelúcia no site do Particle Zoo.

Durante a primeira metade do século XX, a mecânica quântica surgiu quebrando paradigmas e mostrando-se completamente contra intuitiva. Foi necessário uma reformulação na nossa visão sobre as partículas, que passaram a ser descritas por objetos matemáticos chamados de “funções de onda” e que agora não poderiam ser pensadas como um objeto extenso – uma bolinha – mas sim, algo pontual cuja maneira de descrevê-las seria por uma física probabilística. Mas daí, tinha Einstein e sua teoria da relatividade e tudo indicava que quando você a juntava com a mecânica quântica davam várias maluquices e inconsistências. Daí, resumindo a história, depois de um monte de gente importante, dramas, suor e sofrimento, surgiu uma descrição consistente entre a mecânica quântica e a relatividade restrita: a Teoria Quântica de Campos. Com essa teoria, entendemos melhor várias questões como as antipartículas e as interações entre partículas, entre outras coisas que não tínhamos uma explicação apenas com a mecânica quântica . O que sabemos hoje é que a Teoria Quântica de Campos foi o maquinário usado para entender a natureza de uma maneira inacreditável e com isso criamos o Modelo Padrão das partículas elementares (vou chegar lá mais pra frente).

Mas agora você tá pensando, se eu não posso pensar em elétrons como bolinhas eu vou pensar em que? Como o nome da Teoria Quântica de Campo já diz, vamos pensar no elétron como excitações de um campo! Ok, não ajudou muito. Vamos ver o que a Wikipedia nos diz: “Em Física, um campo é a atribuição de  uma quantidade a todo ponto do espaço.”  Meio abstrato mas melhorou. Agora um exemplo mais concreto: pense nos oceanos e o que podemos dizer para caracterizá-lo. Bom, sabemos que a temperatura é importante, muda de ponto para ponto. Também temos as correntes oceânicas e a salinidade em cada ponto, entre outras coisas. Se pudéssemos colocar todas as informações do oceano em cada ponto teríamos um “campo oceânico” e se soubéssemos a dinâmica sobre esse campo, saberíamos as leis que regem esse campo podendo fazer previsões sobre ele.

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Figura (e ideia) tirada da palestra de divulgação científica do Prof. Ricardo D’Elia Matheus (IFT-Unesp).

Semelhante aos oceanos, podemos definir campos associados à cada partícula. Ou seja, temos o campo do elétron que está presente em todo o espaço e que contém informações em cada ponto (como região do espaço-tempo, carga, spin, energia etc). Daí entra uma esquisitice da quântica e relatividade: excitações do campo (que são como as ondas no oceano) correspondem à variações de energia quantizadas (a energia é quantizada isto é como uma escada, só possui valores discretos). Assim, as excitações do campo do elétron tem uma energia mínima e é justamente isso que chamamos de massa do elétron, ou seja é o que caracteriza uma partícula, no caso o elétron! Isso vale para os campos correspondentes a todas as partículas, por exemplo temos o campo de Higgs e suas excitações com uma energia mínima são as partículas que chamamos de bóson de Higgs!

  • Vácuo

Agora é a vez de pensar no vácuo e aposto que a palavra que vem na sua cabeça é: nada – ou seja, a ausência completa de matéria. Ah, mais isso é muito simples, não tem muito o que falar sobre vácuo, certo? Na verdade, não. Lembra que eu disse que a mecânica quântica era contra-intuitiva e muito louca? Então, para a mecânica quântica o vácuo é um treco cheio de partículas (virtuais) pipocando e coisas complicadas que a gente não entende direito até hoje (na verdade é louco mas comprovado por experimentos, se você quiser saber mais pode dar uma olhada em um tal Efeito Casimir). Continuando a analogia do oceano, nesse caso o vácuo é o oceano calmo, sem ondas, ou seja sem partículas (em média), mas olhando de perto vemos pequenas ondulações acontecendo o tempo todo, que seriam as partículas (virtuais) no vácuo quântico.

Vou me limitar a falar do vácuo na Teoria Quântica de Campos que será o ponto chave para entender porque o bóson de Higgs não irá destruir o universo.

Vamos começar falando de energia potencial e montanha russa. Suponha que você está no ponto A da montanha russa da figura abaixo e o motor do carrinho quebrou. Daí um engraçadinho (sempre tem um) sai do carrinho e resolve dar um empurrão, supondo que ele não seja o Hulk, nem o Batman, nem outro super-herói, o carrinho sairá com uma velocidade baixa e é provável que ele não consiga passar do ponto M (supondo que o atrito é grande o suficiente para não deixar ele passar desse ponto). Intuitivamente, aonde o carrinho vai parar? Eu chutaria no ponto K, isso porque é onde temos o mínimo da energia potencial. Qualquer mexida (pequena) no carrinho fará ele oscilar entre os pontos J e L e por fim parar em K – ou seja K é um ponto de equilíbrio estável. Apesar do ponto E também ser, a tendência é sempre ir para o mínimo de energia. Porém, se o amigo desse um empurrão muito leve e o ponto H estivesse na mesma altura do ponto A, dificilmente o carrinho passaria do ponto H e iria parar no ponto E, apesar dele não ser o mínimo GLOBAL da montanha russa.

 

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Voltando para o vácuo e partículas a situação é a seguinte: o campo de cada partícula está permeando todo espaço, então mesmo que não tenha nenhuma partícula no espaço, ainda temos os campos correspondentes a elas. Então para entender o vácuo, não adianta só falar que não existem partículas, também precisamos saber ‘qualé’ a de cada campo no vácuo. Normalmente, a média do valor do campo no vácuo é zero (digo “na média” porque tem aqueles efeitos estranhos da mecânica quântica). Porém, contudo, todavia, entretanto, o campo correspondente a partícula que chamamos de bóson de Higgs (vamos chamar de campo de Higgs), não é zero no vácuo. Ele tem uma energia média no vácuo diferente de zero e isso permite o mundo ser como é. Olhando para o oceano de novo, é mais difícil nadar do que andar, se você não for um peixe, então sua “massa” no oceano é maior. Conclusão: fótons são peixes (não tem “massa”), e é por isso que o campo de Higgs é responsável pela massa das partículas elementares. Essa energia média do vácuo do campo de Higgs é na verdade o mínimo de energia, como o ponto E ou o ponto K da montanha russa! Mas péra, é possível ter dois mínimos (E e K), ou seja dois vácuos para o bóson de Higgs? Guarda isso na cabeça que volto nisso daqui a pouco.

  • Tunelamento quântico

Também guarde a seguinte informação: uma partícula e um carrinho são diferentes (dãã), o primeiro segue as leis da mecânica quântica e o segundo segue as leis da mecânica clássica, o que significa que coisas esquisitas que não acontecem com o segundo, acontecem com o primeiro. Uma delas é chamada de tunelamento quântico.

(para os chatos de plantão, em princípio a quântica deveria explicar os fenômenos macroscópicos uma vez que toda matéria é formada de partículas elementares, então um carrinho pode “tunelar” mas a chance é tão ridícula que nem falamos sobre isso).

Imagine um experimento com uma “armadilha” eletromagnética que force o elétron em uma situação como a montanha russa (suponha que ela termine no ponto H), isto é, que ele fique “preso” no ponto E. Existe alguma maneira dele estando no ponto E, surgir no ponto K? Existe, não é magia nem tecnologia, é a mecânica quântica mesmo. O Princípio da Incerteza de Heisenberg diz que quanto melhor você sabe a posição da partícula, pior você sabe a velocidade. Ou seja, na média o elétron está no ponto E, mas ele pode estar se movimentando próximo do ponto E e você não tem como saber a posição e a velocidade em um dado instante. Tudo bem, mas e como ele pula para o ponto K? Agora suponha que a montanha russa vá do ponto A ao ponto N, do ponto de vista do nosso experimento significa que temos duas “armadilhas” eletromagnéticas. A mecânica quântica diz que existe uma probabilidade (bem pequena) do elétron “atravessar paredes”, isto é ir do ponto E para o ponto K direto! Isso porque se eu sei que o elétron estava no ponto E, Heisenberg nos diz que eu não sei se ele não tinha velocidade suficiente pra passar pelo morro e chegar no ponto K. É contra intuitivo, estranho mas você não pode mais pensar que elétrons são bolinhas, certo?

  • Modelo Padrão

Agora uma pausa para cumprir a promessa de falar sobre o que é o Modelo Padrão. Eu já falei sobre isso em outro post, então vou dar um resumo aqui. Os físicos foram lá, fizeram a Teoria Quântica de Campo e criaram uma ferramenta poderosa para descrever a natureza. Daí uma galera pegou isso e criou um modelo que se propõe a explicar todas as partículas e forças da natureza. Só explicar é bom mas não é suficiente, então ele também faz previsões que vêm sendo testadas e confirmadas por diversos experimentos. As partículas elementares do Modelo Padrão (todas confirmadas experimentalmente) são 6 “tipos” de quarks, 3 léptons carregados (o elétron tá nessa categoria), 3 léptons neutros (os neutrinos) e as partículas responsáveis pelas interações que são os glúons, os bósons W, Z, o fóton e o bóson de Higgs.

E a importância do Higgs nessa história é que de todos dessa lista, faltava ele ser descoberto experimentalmente. Além de ser uma peça chave para a consistência do modelo, o pessoal teve que esperar uns 50 anos entre a previsão teórica e a confirmação experimental.

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Todo mundo #feliz que o bóson de Higgs foi confirmado experimentalmente!

Até aí tudo lindo e maravilhoso, mas de novo sucesso é sofrimento. O Modelo Padrão não explica um tanto de coisa que observamos #físicoschateados, como por exemplo a matéria escura, a assimetria matéria e antimatéria, a energia escura, a gravitação quântica (essa dói o coração), entre outras coisas. Então sabemos que o Modelo Padrão descreve extremamente bem muitos fenômenos mas deixa alguns sem explicação, o que é uma indicação de que ele não é a teoria final. Hoje em dia existem muitas pessoas (inclusive eu) trabalhando (sofrendo) em diversos modelos que são extensões do Modelo Padrão, isto é tentam explicar o que o ele explica e também algumas coisas que ele não explica. Muitas dessas teorias estão sendo testadas no LHC pois preveem por exemplo, a existência de novas partículas.

Agora o ponto importante, o que estamos vendo no LHC (aquele acelerador de partículas gigante) é um bóson de Higgs que PARECE o do Modelo Padrão, mas não podemos dizer com certeza porque ele pode ser um bóson de Higgs que parece o do Modelo Padrão mas na verdade é de outro modelo. Tudo que podemos dizer é que para as energias que atingimos nos experimentos até hoje, o Modelo Padrão parece funcionar como um boa aproximação da natureza. Se construirmos um acelerador de partículas que atinga uma energia 1000 vezes maior que a do LHC, pode ser que o Modelo Padrão não funcione bem para descrever os fenômenos daquela energia. Essa possibilidade é bem realista pois como eu disse, o fato do MP não explicar a matéria escura (por exemplo) nos faz pensar que existe uma teoria “maior” que seja uma extensão do Modelo Padrão, que explique bem os fenômenos da energia do LHC e também de energias muito maiores.

  • Por que o bóson de Higgs não vai destruir o mundo?

Primeira suposição extremamente importante para tudo o que eu vou dizer daqui em diante: Suponha que o Modelo Padrão é a teoria final e que explique os fenômenos de energias muito mais altas do que a do LHC (o que é improvável).

Nesse caso, o Modelo Padrão diz que o campo de Higgs no vácuo possui dois mínimos de energia (como os pontos E e K da montanha russa). Um é o que conhecemos e o que fazemos as contas, o universo existe tá tudo lindo. O outro é super esquisito e o campo de Higgs teria uma energia muitooooooooooo grande (comparação na figura abaixo, retirada do blog Of Particular Significance). Então dizemos que existem dois vácuos na teoria.

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Diferença de energia entre os dois vácuos que o Modelo Padrão prevê para o campo de Higgs, supondo que esse modelo vale para energias ridiculamente altas.

Agora lembra do papo de tunelamento quântico? Então o bóson de Higgs pode pipocar de um vácuo para o outro. E daí o valor médio do campo de Higgs no vácuo esquisito seria gigantesco e definitivamente o universo não seria como conhecemos. Gente, mas existe uma chance meu deus do céu, vai que eu acordo e pááá, mudamos para o vácuo esquisito! Quando eu digo que a chance é pequena, ela é realmente pequena, você teria que esperar mais do que a idade do universo para ver isso acontecer. Além disso, meio que não sabemos se toda essa conta faz sentido, pois a energia é tão grande que não sabemos se os nossos modelos servem para descrever esse tipo de coisa. É realmente um tiro no escuro pensar sobre isso e não existe nem um consenso na área de como se calcula isso e se realmente faz sentido discutir tudo isso.

Conclusão: Desculpa te deixar #chateado, mas a única coisa que o bóson de Higgs  pode destruir é a minha tese de doutorado mesmo. O universo vai continuar aonde ele tá.

  • Resumão 

Útil se você não quis ler tudo ou se você leu e quer ver o que você aprendeu no texto (:

  1.  Partículas são descritas por campos;
  2. O vácuo tem um monte de coisas; mais importante dela é que o valor do campo de Higgs no vácuo não é zero;
  3. Pode existir mais de um mínimo de energia e assim você teria mais de um vácuo;
  4. O Modelo Padrão descreve a natureza muito bem mas não achamos que ele é a teoria final, ou seja para descrever fenômenos com uma energia muito grande ele pode não funcionar;
  5. Se supormos que o Modelo Padrão vale para energias muito altas vemos que o campo do Higgs possui dois vácuos: um que conhecemos e outro esquisito com uma energia muito grande;
  6. A mecânica quântica é esquisita e diz que uma partícula pode “tunelar” (“atravessar”) de um vácuo para o outro;
  7. Logo, existe uma probabilidade (bem pequena) do campo de Higgs ter uma energia no vácuo correspondente ao vácuo esquisito;
  8. Essa probabilidade é tão pequena, que teríamos que esperar mais tempo do que os bilhões de anos que o universo existe;
  9. Se o campo de Higgs tivesse uma energia no vácuo correspondente ao vácuo esquisito, não estaríamos aqui para contar história;
  10. Gente, vai se preocupar com a ebola e deixem o pobre do bóson de Higgs em paz. Obrigada, de nada.

 

Obs.:

  • Enquanto eu escrevia surgiu esse texto do Matt Strassler falando sobre a mesma coisa. O blog dele é ótimo e bem didático, peguei algumas ideia para escrever esse texto.
  • A Scientific American falando sobre o assunto e mostrando que é possível fazer divulgação científica de maneira séria.
  • Um texto um pouco mais técnico mas muito bom pode ser visto no blog Résonaances.
  • E muita gente fazendo um desserviço para a ciência: GalileuInfoExame, entre outros.
  • Outra coisa, aceito correções e sugestões. O texto foi feito meio corrido e não passou por muitas revisões, então qualquer problema é só deixar um comentário (simpático de preferência). E um obrigada para o Leonardo por ajudar na revisão e dar ótimas sugestões 🙂