A Picaretagem da Pseudociência

Antes de explicar o título deste post, vou propor uma coisa. Imagine que você trabalha em um projeto na sua empresa/escritório/escola/faculdade e que você se dedica a ele por vários anos. Você precisa aprender um monte de coisas antes de conseguir executar e ter suas próprias ideias. Depois de um tempo, você passa a sentir um certo amor por aquilo, afinal você gastou várias horas da sua vida. Eis que um dia chega uma pessoa nova, olha tudo o que você fez e do dia pra noite ela decide que é especialista no assunto e sabe mais do que você. Até aí, tudo bem, gente louca tem em todo lugar. Mas, pior do que isso, essa pessoa distorce o que você fez e vende a ideia como se fosse certa e fosse a verdade absoluta. E pior ainda, ela ainda recebe reconhecimento por isso!

Tá, agora você sabe como eu me sinto quando vejo alguém divulgando pseudociência e, ainda por cima, cobrando por isso. Hoje me deparei com o site do Prof. Laércio Fonseca. Dando um Google, encontrei os seguintes comentários sobre a tal pessoa:

“É de um físico quântico que conseguiu provar a relação entre matéria e espiritualidade, reencarnação e comunicação mediúnica. É totalmente baseado em raciocínios matemáticos e fórmulas.”

“O professor Laércio B. Fonseca, físico e especializado em astrofísica, em seu livro FÍSICA QUÂNTICA E ESPIRITUALIDADE analisa os fenômenos paranormais e espirituais. Utilizando as mais modernas teorias científicas da atualidade, apresenta neste vídeo a Nova Física, uma vertente dentro da física atual que leva em consideração a consciência como parte integrante das teorias físicas e de todo fenômeno no universo.”

Sou completamente a favor da liberdade de expressão. Cada um tem sua crença e isso sem dúvidas deve ser respeitado. Minha crítica não diz respeito à questão espiritual e, sim, aos meios utilizados para convencer as pessoas de uma ideia. Apoiar-se em assuntos pouco conhecidos (pela maior parte das pessoas e pelo próprio autor) e de difícil questionamento, nem de perto é fazer ciência. Falando do meu meio de convivência, posso dizer que sempre aparecem uns físicos malucos divulgando alguma ideia sem sentido, seja na fila do bandejão (vestido de gari) ou em algum congresso por aí. Esses são inofensivos e vou deixar pra lá. Mas quando alguém cobra R$ 380 por uma palestra de física quântica e espiritualidade (e muito mais por livros, DVDs, cursos etc) e vende suas ideias como verdade absoluta e aceita cientificamente, o que NÃO é verdade, confesso que me irrito e isso me fez levantar do sofá no feriado para escrever esse texto.

Não vou falar sobre os comentários do vídeo de abertura do curso, do tipo “espiritualidade vai ser a linha de frente da ciência no futuro” ou “vai ter uma revolução quando a ciência demonstrar a vida após a morte” ou “o ET conhece o seu espírito”. Porque, né, acho que nem tem o que falar. Mas vou apontar alguns conceitos físicos claramente errados que ele utiliza para convencer as pessoas de sua ‘teoria’. Aliás, o vídeo da palestra possui 14 partes, o que dá aproximadamente 2h.

A ideia é simples: a consciência é como uma partícula, ela tem níveis de energia que ficam em dimensões diferentes e podemos nos comunicar, pois existe um campo cósmico (a consciência é a manifestação dele) e todos estamos conectados. Isto explica a existência de extraterrestres, espíritos e, nas palavras dele, “quantiza e matematiza Deus”.

É falado que a prova de que a consciência existe é que todas as partículas do universo estão correlacionadas. Isso porque, no início, tudo estava em um mesmo ponto e de maneira correlacionada. Depois que ocorreu o Big Bang e o universo se expandiu, essa característica se manteve. E o que significam essas partículas correlacionadas? Ele argumenta que um fóton/elétron tem uma propriedade chamada ‘spin’, que faz ele girar em uma direção ou outra, e isto funciona como uma engrenagem: se um roda para um lado, o outro tem que rodar para o outro. Existe uma propriedade da quântica que quando você muda o sentido da rotação de um, o outro muda instantaneamente. Portanto, tudo está de alguma forma ligado e é a prova da existência da consciência.

Mas aí surge a pergunta: por que não percebemos a consciência da mesma forma que percebemos as partículas? Simples! A solução é encontrada dizendo que a consciência é uma onda (daí, ele invoca a dualidade onda-partícula da mecânica quântica) e oscila longitudinalmente e não transversalmente, e isso “não dá solidez para a partícula”. Dessa forma, as consciências se unem em uma só.

Ok. Não sei nem por onde começar, então vamos por partes. A dualidade onda-partícula diz que a luz pode ser descrita por meio de uma onda eletromagnética ou de uma partícula – o fóton. Dependendo do tipo de experimento que fazemos, vemos a manifestação de um caráter da luz. Isso nos motiva a entender as interações por meio da troca de partículas. Mas o que isso significa? Que a estrutura mais fundamental que conhecemos é o campo, a partícula pode ser entendida como o menor “pedacinho” deste campo. Exemplos de campos que conhecemos são os campos gravitacionais (que ainda não encontramos a partícula associada a ele, o ‘hipotético’ gráviton) e o campo eletromagnético. De novo, é uma descrição, não significa que você tem uma bolinha chamada fóton andando por aí e eis que de repente ele resolve virar uma ondinha e sair oscilando. Além disso, o tipo de oscilação não implica em solidez. Aliás, foi tão sem sentido isso que não sei nem o quê comentar!

Tirinha de S.Harris

Outra coisa, os níveis de energia quantizados que vemos nos elétrons em átomos (você pode ler sobre isso em um post anterior) não têm nada a ver com a dimensão na qual eles estão. Mudar de nível de energia não significa mudar de dimensão no espaço.

A descrição que dada para o spin também está completamente equivocada (você pode ver uma discussão disso no Physics Act). O spin é uma propriedade quântica e não uma propriedade clássica como uma simples rotação, mesmo porque na mecânica quântica não podemos pensar em partículas como bolinhas! Esta é uma descrição clássica, dada por Thomson e Bohr, com os modelos de “pudim de passas”, que apendemos na escola, e das órbitas atômicas. Em quântica, pensamos na sobreposição de estados. O que significa que não temos uma descrição exata e, sim, probabilística. E não, não é como uma engrenagem.

O que é dito como sendo partículas “correlacionadas” é conhecido como ‘emaranhamento quântico’. O emaranhamento é uma propriedade engraçada, que diz que quando partículas são criadas juntas, existem propriedades correlacionadas. Assim, mesmo que depois você as separe, a medida de uma implica na medida de outra. É como escolher o seu par de meias de manhã. Nas condições normais de sanidade mental, você pega o par da mesma cor. Se você pega a direita azul, significa que a esquerda vai ser azul também. Então, eu só preciso olhar para o seu pé direito para ‘adivinhar’ a cor do esquerdo. A ideia é parecida com partículas, mas uma pode estar aqui e a outra bem longe (com seu pés é meio complicado). Agora, isso não significa que as partículas estão conversando à distância e trocam informação instantaneamente, violando a relatividade de Einstein. O que significa é que certas propriedades são de alguma maneira correlacionadas. E isso não vale para qualquer partícula viajando por aí. Veja que eu só posso adivinhar a cor do par da sua meia naquele dia. No próximo dia, eu não vou saber mais nada. Da mesma maneira, dizemos que as partículas precisam estar emaranhadas.

Eu não sou nem de perto especialista em fundamentos da mecânica quântica. Hoje essa área tomou vida própria e para quem não trabalha diretamente com isso pode ser difícil acompanhar tudo o que está acontecendo. Mas eu tenho uma visão crítica sobre o assunto e é isso que as pessoas deveriam se preocupar em ter. É isso o que eu queria passar com esse post. Quando alguém te falar alguma coisa, pense, questione, pesquise. Não acredite porque alguém falou. Acredite por você.

A “máfia” da pseudociência está cada vez mais comum e a divulgação científica de qualidade é cada dia mais deixada de lado. Pode ter certeza de que nenhum cientista sai por aí cobrando para explicar suas ideias. A ciência é feita de discussão, questionamento e interação entre as pessoas. A lógica também é importante, abrir um livro de física, pegar palavras difíceis aleatoriamente e juntar elas em um frase, não conta como ciência.

Finalizo esse desabafo com um trecho do livro “O capelão do Diabo” de Richard Dawkins:

“Há inúmero livros publicados sobre “cura quântica”, isso sem falar na psicologia quântica, na responsabilidade quântica, na moralidade quântica, na estética quântica, na imortalidade quântica e na teologia quântica. Ainda não descobri um livro sobre feminismo quântico, administração financeira quântica ou teoria afroquântica, mas deve ser uma questão de tempo (…)”

PS Fechamos os comentários nesse post. A idéia dos comentários é complementar a discussão feita no post e não abrir espaço para uma batalha ideológica. É fácil ver a diferença entre os primeiros comentários onde havia uma conversa salutar e os seguintes que eventualmente degeneraram numa discussão sobre ciência x religião. O assunto do post não é religião e não é plausível que a discussão gire em torno disso. Ademais ataques pessoais e uso de ironias entre os usuários torna o ambiente hostil. Para futuros comentários em outros posts leiam o about sobre regras gerais para comentários.