Mortos-Vivos, Gatos e uma pitadinha de Jazz

Em 2007 eu tinha acabado de entrar na graduação quando um dia me deparei com um anúncio um tanto quanto diferente no mural do Instituto de Física da USP. Era de uma aluna do Audiovisual dizendo que estava fazendo um filme discutindo paralelos entre mecânica quântica e jazz. Naturalmente, como todo aluno de física que acha que sabe pra caralho de tudo, mandei um email com algumas sugestões, mas não acompanhei mais o projeto, embora não lembre por que. A bem da verdade eu não tenho muitas memórias daquele ano, o que explica quais eram minhas prioridades aos dezoito anos. Etilicidades a parte, recentemente lembrei disso e fiquei curioso sobre como tudo terminou. Com uma vaga memória de um nome e a ajuda do google encontrei a Marilia Fredini, de modo que agora eu apresento para vocês o ótimo curta Morto Vivo:

Massa né? Peraí, você ainda não assistiu e continuou lendo? Vai lá, dez minutinhos, você gasta mais tempo que isso no facebook durante o trabalho. Agora sim. Antes de eu explicar mais sobre mecânica quântica, já que o Giorgio fez um trabalho meia boca, o diretor do filme Gustavo Suzuki concordou em responder umas perguntas pra gente.

True Singularity: De onde veio a idéia do filme, em particular do paralelo da física quântica com o jazz?

A idéia do filme veio da minha obsessão pelo experimento do Gato de Schrodinger. Começamos a filmá-lo como um documentário sobre o experimento, entrevistando professores reais de física quântica. Aos poucos, porém, fui percebendo que esse formato documental não era suficiente para tratar de algumas coisas que foram surgindo no decorrer da filmagem.

A parte mais interessante pra mim foi o claro paralelo simbólico entre o experimento e o ato de filmar. No experimento do Gato de Schrodinger – até onde eu entendo sobre o assunto – o gato fica dentro da caixa num estado simultâneo e nebuloso de vida e morte. A partir do momento em que alguém abre a caixa e olha o gato (ou “mede” o gato, por assim dizer), ele deixa de estar vivo E morto para estar OU vivo, OU morto. Ora, esse procedimento, no ato de fazer um documentário, ocorre de forma parecida. Pois, tal qual o gato, nós somos um emaranhado de coisas complexas e paradoxais mas, diante da câmera – ou seja, quando somos “medidos” por alguém – a gente meio que escolhe uma verdade dentre as várias possíveis e adota ela. Então, de fato, o ato de observar alguém (seja o gato na caixa, seja alguém que está sendo filmado para um documentário) é também um ato de transformar a realidade. Em outras palavras, observar não é uma atitude passiva, mas uma atitude que implica em consequências na realidade à sua volta.

Para tratar dessa questão, portanto, percebi que fazer um documentário não seria o melhor jeito de fazer o filme. Seria como fazer o experimento do Gato de Schrodinger de dentro da caixa. Daí resolvemos fazer um “falso documentário” (um “mockumentary” como chamam por aí), representando em ficção aquilo que eu queria tratar – da mesma forma que o experimento do Gato de Schrodinger nunca foi feito na realidade, mas apenas proposto hipoteticamente.

Quanto à relação da física com o jazz, acho que as duas coisas transitam bastante nessa ideia de que os eventos não são pré-determinados, mas sim potencializados a acontecer de uma certa forma. Na física quântica, uma força aplicada num objeto qualquer não determina que ele vá do lugar X ao Y, mas apenas faz com que ele tenha uma probabilidade muito grande de seguir esse trajeto. Existe algo de abraçar o randômico e o caos na física quântica, que tem muito a ver com o jazz. No jazz, um tema quando é tocado potencializa os músicos a seguirem certos caminhos harmônicos e melódicos mas, como na quântica, eles estão livres para surpreender. De tal forma, tanto o jazz quanto a física quântica abraçam aquele lugar que nosso cérebro vê como um aparente paradoxo: o gato que está morto e vivo ao mesmo tempo, a música que é simultaneamente bonita e feia (como a que o professor canta no filme, entitulada Ugly Beauty), etc etc.

TS: Quais foram as maiores dificuldades para fazer o filme? A caracterização do físico, em especial, descrevendo situações complicadas como se fossem óbvias me pareceu bem fidedigna (e me faz rir genuinamente cada vez que assisto). A comunicação com as pessoas da física foi complicada?

A comunicação com o pessoal da física foi bem complicada. Não por falta de disponibilidade deles, mas acho que pela recusa acadêmica de viajar nas pirações mais simbólicas, filosóficas e poéticas. De algum modo, sentia que, aos olhos dos professores, estava cometendo uma heresia ao tentar encontrar algo a mais dentro dos conceitos físicos. E, de certo modo, eu entendo eles.  Muito do personagem do professor veio das entrevistas que fizemos com professores reais, especialmente na descrição de coisas complexas como se fossem óbvias.

PS do TS: Os meus três leitores regulares vão achar essa questão bem meta em relação ao blog. Muitas vezes terminei um texto 100% orgulhoso de explicar um assunto complicado de forma simples para um amigo me dizer que não entendeu nada. Eu sei, mea culpa, to tentando.

TS: Ter feito esse filme mudou em alguma forma o modo como você lida com a física atualmente? Eu quero dizer, mudou a sua perspectiva em relação a ela?

Fazer o filme mudou sim minha relação com a física. Sei lá, embora eu ainda seja um tremendo amador em relação ao tema, a pesquisa me tirou um pouco do lugar do “entusiasta” para sacar melhor alguns conceitos básicos. Acho que, depois do filme, o tema da quântica saiu desse lugar mítico e incompreensível e mágico para se encontrar num lugar mais, sei lá, prático e simples, ao mesmo tempo que muito interessante sob um ponto de vista mais, sei lá, filosófico.

“Ok, deram mil palavras nesse post já, com um vídeo e sem memes, tenho mais o que fazer”. Tudo bem, vai lá voltar para suas atividades importantes. “Mas Cesar, e eu, ainda não entendi essa do Gato de Schrödinger”. Bom saber, leitor interessado imaginário, vou tentar explicar melhor então.

Logo no começo do vídeo o professor Giorgio afirma que na mecânica quântica tudo é possível. Que a caneca dele pode desaparecer da mão dele e aparecer em outro lugar. Isso é uma bobagem enorme. Para explicar isso antes vamos definir alguns conceitos. Quando falamos em física clássica nos referimos à física dos objetos macroscópicos com os quais interagimos cotidianamente. Quando falamos de física quântica nos referimos aos objetos microscópicos, como átomos. No caso da física clássica o fato de que temos contato sensorial com objetos macroscópicos implica que nós temos uma intuição natural das leis da física. Por exemplo, se você dá uma tacada numa bola de bilhar ela adquire uma velocidade na direção da batida. Você não precisa saber da segunda lei de Newton para jogar bilhar porque sua intuição automaticamente incorpora essa experiência (embora o filme Não por Acaso tenha algo a dizer sobre isso). Para entender o que vem a seguir é importante ter em mente que como não temos acesso direto pelos nossos sentidos a objetos microscópicos nõs não desenvolvemos uma intuição a respeito do comportamendo deles. E justamente por isso não há motivo algum para esperar que eles se comportem da mesma forma que objetos macroscópicos. A maior fonte de confusão com relação a física quântica deriva de querer usar a sua intuição e conceitos desenvolvidos para o mundo cotidiano para objetos além dos nossos sentidos diretos. Então se desapegue do que você acha que sabe daqui por diante.

Então do que o Giorgio tava falando no começo? Imagine uma mesa de bilhar. De um lado uma bola onde você vai bater, do outro lado um monte de bolas alvo. Entre elas você coloca uma barreira pequena, e por cima da barreira um cobertor que não te deixa ver onde a barreira está. Como saber a posição da barreira? Fácil, você vai dando tacadas em várias direções e vê se acerta uma bola alvo ou não. Se acertar é porque na direção que você deu a tacada não tem barreira e vice-versa. Agora vamos fazer uma mesa de sinuca minúscula e trocar as bolas por átomos. Se você fizer isso o que vai acontecer é que independentemente de onde você coloque a barreira existe uma chance de acertar qualquer um dos átomos alvo. Qualquer um. Isso porque na física quântica tudo que não é proibido de acontecer, por alguma lei como conservação de energia, irá acontecer com alguma probabilidade. Mas nem tudo é permitido. Se eu fizer uma barreira do tamanho da mesa nenhum átomo vai passar, porque não tem como ele se teletransportar. Por outro lado isso significa que sempre que existir mais de uma possibilidade os objetos quânticos necessariamente se comportam de modo probabilístico. Não é como com os bilhares que cada tacada tem uma consequência certa, apenas chances de acontecer. Antes de ver qual alvo é acertado não tem como ter certeza de onde o átomo vai parar. Beleza?

Curtiu minhas habilidades gráficas?

Curtiu minhas habilidades gráficas?

E agora o gato. Antes de tudo tem o átomo radioativo na caixa, pode ser o Urânio mesmo. Ser radioativo significa que o Urânio pode espontaneamente quebrar seu núcleo atômico em duas partes. Geralmente uma mais pesada, um outro núcleo atômico como o Chumbo, e outra mais leve que sai voando por aí e chamamos de radiação. Isso que é o tal do decaimento. Como existem duas possibilidades para o Urânio, decair ou não decair, então a cada instante de tempo existe uma chance de cada uma dessas coisas acontecer. Se você pegar um átomo de Urânio e deixar ele quieto, enquanto não olhar pra ele não vai saber se ele decaiu ou não, apenas que existe uma chance de que ele tenha decaido. Assim, enquanto você não olha pra ele de novo o átomo existe como uma mistura de Urânio e Chumbo+Radiação, não sendo nenhum dois dois exclusivamente. Você não deveria achar isso muito estranho, porque como eu disse sua intuição não vale nada para um átomo.

O que o Schrödinger percebeu foi que se você colocar o átomo, com o detetor Geiger, o martelo, o veneno e o gato, então você consegue transferir essa superposição de dois estados diferentes de algo microscópico para algo macroscópico. De um ponto de vista o gato é feito de átomos, e portanto se vale para um átomo sozinho tem de valer para um conjunto deles. Por outro lado, como é possível entender que um gato esteja vivo e morto ao mesmo tempo?

Para isso você precisa se perguntar o que significa o gato estar vivo ou morto. “Cesar, é fácil, um gato está vivo quando ele está lá destruindo meu sofá, e morto quando eu chego em casa e o sofá tá inteiro”. Ótima resposta leitor. Vivo ou morto é uma questão da sua habilidade de interagir com ele. Então em quanto ele está dentro da caixa da qual você não tem acesso não há como dizer se ele está vivo ou morto, portanto não há paradoxo em ele estar numa sobreposição de ambos, assim como o átomo está. A moral de estória é que um experimento que não é realizado não tem resultado. Enquanto você não verificar se o gato está vivo ou morto ele não precisa estar nem uma coisa nem outra.

Uma outra forma de pensar nisso é como uma dificuldade da linguagem (aproveitando a menção ao Saussure no filme). Não é porque você consegue formular uma pergunta respeitando a gramática que a pergunta faz sentido. Por exemplo, quem foi o campeão do mundial de clubes de 2000? Bom, o mundial de clubes é um torneio entre campeões de torneios continentais para decidir qual o melhor. No ano de 2000 não foi organizado nenhum torneio respeitando essa diretriz, portanto a despeito de nomes não houve mundial de clubes, e portanto não existe o campeão desse ano. Da mesma forma não se pode perguntar se o gato está vivo ou morto dentro da caixa pois se não houver método de determinar qual dos dois é o estado real então não é necessário haver uma resposta que esteja de acordo com suas preconcepções.