Review: A ciência de “Interestelar”

Na última sexta-feira eu fui ver “Interestelar”, o novo filme do Christopher Nolan. Por sinal, se você estava no Bristol na sessão das 17hs e tinha duas pessoas que não paravam de conversar…ãh…eh…foi mal. Eu e minha amiga estávamos tentando entender direito o filme. Mas se um dia você passar por São Carlos me dá um toque, te pago uma cerveja para me desculpar.

E o que achamos do filme? Bem, nós saímos bem revoltados com certos aspectos da ciência. Em retrospectiva percebi que se tivéssemos prestado mais atenção (e não ficado conversando) teríamos tido uma impressão melhor. Acho que muitos críticos também não prestaram atenção direito, dado que muita gente achou terrível a ciência e/ou a narrativa como um todo. Aparentemente uma parte da crítica, assim como eu, não seguiu o meu conselho sobre o estado mental necessário para ver o filme.

Enfim, a menos de uma ou duas coisas que ainda me parecem impossíveis, embora talvez sejam perdoáveis, acho que o filme é o mais cientificamente correto em nível conceitual dos últimos anos, e que usou a física de forma engenhosa em certas partes do roteiro. Vou tentar falar um pouco sobre certos aspectos do filme, e o quão plausíveis eles são, pelo menos na minha interpretação. Se não ficou claro, muitos spoilers daqui pra frente.

Sobre a ambientação

No começo do filme aprendemos que em um futuro próximo (eu diria numa escala menor que cem anos) apareceu uma praga que devasta praticamente todo tipo de planta. Sem elas temos um problema com os ciclos do oxigênio e do gás carbônico, acabando com o primeiro e aumentando a concentração do segundo, somando complicações respiratórias à falta de comida. Eu não sei muito sobre isso, mas acho bastante improvável uma praga tão indiscriminatória e menos ainda ela conseguir afetar o ciclo do oxigênio, dado que a praga teria de atacar quase tudo que faz fotossíntese, incluindo cianobactérias. Se você for biólogo e souber melhor, por favor comente. Do meu ponto de vista é algo possível, embora absurdamente improvável. Mas dado que achei uma idéia mais original para cenário apocalíptico do que mudanças climáticas/ambientais eu estou disposto a não encanar com isso.

De qualquer modo a Terra está condenada e precisamos de um planeta novo. Para isso temos dois planos. O plano A envolve mandar toda a população restante para o outro planeta. Como? Bom, quando o Cooper (Matthew McConaughey) chega na NASA ele nota que a instalação inteira é construída como uma colônia de O’Neill. O problema é conseguir lançar a estação no espaço. O Alfred, aquele do Batman, diz que está trabalhando em uma equação, cuja solução permitira tirar a bagaça toda do planeta. Como isso funcionaria? Então, ninguém nunca fala, mas veremos isso mais para frente. O plano B é o usual, mandar embriões, começar uma colônia nova no planeta e abandonar quem ficou para trás. Ok, só precisamos de um planeta. Pena que a estrela mais próxima está a mais de 4 anos-luz. Ainda bem que apareceu um buraco de minhoca por perto.

Buraco de Minhoca?

Um buraco de minhoca é um “atalho” entre dois pontos do espaço de modo que exista um caminho mais curto entre esses pontos do que a a reta entre eles. Eu não vou falar muito mais sobre isso porque achei que o filme deu uma explicação suficiente e é razoavelmente lugar comum na ficção científica. Talvez num post futuro.

O que eu quero falar é sobre o quão plausíveis são buracos de minhoca. Essencialmente este tipo que aparece no filme requer a existência de uma matéria exótica. Como assim? Matéria exótica é um jargão para qualquer tipo de matéria que tenha densidade de energia negativa. O que implica que alguém medindo a massa dela veria uma massa negativa. Isso não tem nada a ver com antimatéria, que tem massa positiva. É algo muito mais estranho. Você perto de algo com massa negativa “cairia para cima”, isto é se sentiria repelido pela gravidade.

Isso certamente não existe certo? Certo? Bem meu caro, na verdade conhecemos certas situações em mecânica quântica que permitem a existência, embora pequena, de densidade de energia negativa. Até já medimos isso, o chamado efeito Casimir. Então, embora manter um buraco de minhoca possa ser complicado, não existe nenhuma lei bem estabelecida na física hoje que proíbe a existência deles, ainda que uma análise detalhada revele que eles devem ser situações bem excepcionais. Mas se eles existirem deve ser ok atravessar um sem muitos problemas.

Criar eles no entanto é bem problemático. A relatividade geral parece proibir algo chamado mudança de topologia, que, entre outras coisas, proibiria criar e destruir um buraco de minhoca.

Então embora a existência deles seja especulativa a criação deles, como no filme, parece algo muito além do especulativo. Mas provavelmente perdoável dada a ausência de uma lei definitiva contra isso. Entretanto meu orientador apontou uma ocorrência mais absurda ainda no filme, envolvendo buracos de minhoca. Ao chegar na NASA o Alfred mostra para o Cooper uma imagem de uma anomalia gravitacional. De primeira ele pergunta “isso é um buraco de minhoca?”. Obviamente nunca que um engenheiro conseguiria entender a situação o suficiente para fazer tal suposição. Forçou a barra legal aí o Nolan.

Falando em coisas absurdas, existe um tipo de buraco de minhoca nada plausível. É a chamada ponte de Einstein-Rosen. É um tipo de buraco de minhoca feito sem matéria exótica, usando apenas dois buracos negros “colados”. Estes são completamente instáveis e não podem existir de modo algum. Então esqueça e ignore qualquer pessoa sugerindo que estes aparecem no filme. De qualquer modo o Cooper, a Anne Hathaway e dois caras esquecíveis atravessam o buraco de minhoca até outra galáxia e encontram os planetas candidatos para abrigar a humanidade, orbitando um buraco negro.

O buraco negro e os planetas

Já falei demais de buracos negros aqui e aqui, então não vou entrar em muitos detalhes. Gargantua é um buraco negro centenas de milhões de vezes mais massivo que o Sol. Isso é fácil de ver pelo tamanho dele. Um buraco negro com algumas dezenas de vezes a massa do Sol é menor que a cidade de São Paulo! Além disso ele está girando muito rapidamente. Quão rapidamente? Mais que 99,99% da velocidade da luz, em algum sentido que pode ser feito preciso.

Isso permite que o planeta da Miller tenha uma órbita estável muito próxima ao horizonte de eventos, onde uma hora no planeta equivale a 7 anos para quem está muito longe. A esta distância do buraco negro o planeta necessariamente está girando sincronizadamente com o buraco negro, de modo que um lado do planeta sempre está de frente ao mesmo e o outro lado sempre alinhado com o espaço, da mesma forma que a Lua sempre mostra a mesma face para a Terra.

Duas questões: 1) tão perto do buraco negro o planeta não deveria ser destruído pela força gravitacional do mesmo? e 2) se o planeta não orbita uma estrela da onde vem a energia que o impede de ser um bloco de gelo?

1) Essa é uma confusão que incrivelmente enganou muitos astrofísicos por aí. A força gravitacional por si tem o efeito de retardar o tempo, como visto no filme. Para ela destroçar o planeta é necessária que ela varie significativamente ao longo da extensão do planeta. Mas como eu disse esse buraco negro é enorme. A gravidade não varia mais ao longo do planeta do que ela varia quando você viaja de um lugar para outro aqui na Terra. Então o planeta é bem estável estruturalmente falando, porque o buraco negro atrai quase todo canto igualmente

2) De fato o planeta não tem estrela, mas o buraco negro tem um disco de acreção, aquela anel luminoso ao redor dele. É ele quem fornece a energia para o planeta da Miller. Normalmente o disco está muito próximo ao buraco negro e gira tão rápido que produz além de luz vários raios-X e outras formas de radiação. Neste caso o disco está além da órbita do planeta e gira suficientemente devagar para que a maior parte da energia emitida esteja na frequência do visível, assim como o nosso Sol.

E aquelas ondas enormes? Bom, se o planeta não estiver exatamente sincronizado, como é de se esperar, ele deve ficar com a face virada para o buraco negro balançando entre o ponto de equilíbrio, como um pêndulo. Segundo o Kip Thorne esse balanço tem um período de mais ou menos uma hora, e o balanço força ondas enormes, devido ao tamanho da gravidade do buraco negro, a aparecer nesse mesmo período.

E o planeta de gelo do Matt Damon? Bom, esse realmente me parece mais problemático. É dito que ele está mais longe do buraco negro, então para não ficar no meio do disco de acreção onde é mais quente ele tem que ter uma órbita bem elíptica ou ainda mais esquisita. E as nuvens de gelo são absolutamente impossíveis.

Aliás aqui reside o grande absurdo de “interestelar”, como eles são capazes de ir de um lugar para outro com tão pouco espaço para combustível, sendo que é óbvio que se precisa de enorme energia para viajar de um planeta a outro? Sem contar a Anne Hathaway, que se entendi corretamente está lá para cuidar dos embriões do plano B, sabendo tudo de relatividade, mas são problemas de engenharia que estou disposto a ignorar.

De qualquer modo várias coisas acontecem nos planetas até que o Cooper se joga no buraco negro para salvar a Anne Hathaway (o que obviamente não faria a menor diferença, a massa do Ranger é muito pequena, mas ok de novo)

Para dentro do buraco negro

“isso foi ridículo, como o Cooper cai dentro do buraco negro e não morre ao atravessar o horizonte de eventos? Ele deveria ter sido espaghetificado!” você diz após ler muita divulgação científica. Mas o que não está transparecendo é que isso seria verdade para um buraco negro muito pequeno. Gargantua é enorme, e pelo mesmo motivo que ele não destrói o planeta da Miller, a gravidade não varia muito de ponto a ponto, ele não vai fazer nada demais com Cooper. Inclusive esse é o grande ponto do princípio de equivalência de Einstein, se a gravidade é quase uniforme então Cooper nem tinha como saber quando ele entrou no buraco negro, porque nada demais acontece.

Ele, e o monolito de 2001/robo abusado, viajam pela imaginação do departamento de CG de como é o interior de um buraco negro, até encontrar uma singularidade, um lugar no espaçotempo onde a relatividade geral não mais se aplica e a mecânica quântica se faz presente.

Aqui se encaixa uma frase que em princípio achei bizarra no filme, os tais dos “dados quânticos”. Esses são as informações de como se comportam a singularidade quando age a mecânica quântica, assumindo que o monolito fosse capaz de registrar adequadamente os dados, afinal ele não foi feito para esse tipo de medida.

Com tal licença concedida, Cooper cai dentro de um hipercubo, um cubo em quatro dimensões, o tal do “tesseract”. Esse hipercubo é na verdade algum tipo de máquina que existe em mais dimensões. Ele transporta Cooper para o local do quarto de sua filha, Murph, usando a dimensão extra da mesma forma que ao invés de atravessar uma rua você pode subir por uma passarela, passar por cima da rua e depois descer do outro lado.

Cooper fica em uma dada face do hipercubo, face esta que ao chegar no quarto de Murph mostra o tempo como ele é, como uma outra dimensão. Veja bem, nós normalmente vivemos no espaço, experimentando instante a instante do tempo. No hipercubo isso se inverte, ele mostra um ponto fixo do espaço, o quarto, e Cooper pode ver para trás e para frente no tempo.

Importante notar que aqui Cooper não está viajando no tempo, ele está meramente vendo cada instante de tempo que se passou no quarto, como alguém que assistisse um filme pudesse ter acesso a cada frame individual e escolher voltar ou passar para frente a fita. Tanto ele não volta no tempo que a filha dele não o vê atrás da estante de livros.

No entanto ele descobre que ele pode emitir sinais gravitacionais para trás no tempo, efetivamente usando eles para derrubar livros, entre outras coisas. A mensagem é clara, apenas através de ondas gravitacionais podemos mandar mensagens para trás no tempo. Cooper no entanto continua sempre na sua própria linha temporal.

Ele então transmite as informações a respeito do real comportamento da singularidade do buraco negro para sua filha, agora uma física teórica, que aparentemente consegue terminar a teoria da gravitação quântica, tendo acesso aos dados experimentais que faltavam.

E como isso ajuda com o Plano A de salvar a humanidade? Presumivelmente dominando a gravitação quântica ela é capaz de bolar um jeito de diminuir a força da gravidade na Terra. Isso vai acabar destruindo o planeta, que sem tal força não pode mais ficar íntegro, mas ao mesmo tempo permite lançar as colônias de O’Neill ao espaço sem dificuldade, pois agora não se tem gravidade alguma a se vencer para por algo em órbita.

Então a única coisa que viaja no tempo é a informação, nada mais. Perceba que no filme a viagem no tempo funciona da mesma forma que em “O Exterminador do Futuro”, onde John Connor manda Kyle Reese para o passado para proteger sua mãe e acaba que Kyle Reese é seu pai. Aqui Cooper mandar as informações para o passado que permitem sua viagem para o buraco negro, de modo que tudo é auto-consistente, uma escapatória usual para possíveis paradoxos de mandar informações para o passado.

O que é interessante no filme é que ele envolve ao menos duas viagens no tempo desse tipo. Cooper manda sinais gravitacionais para o passado que, causam sua viagem, e a humanidade no futuro cria o buraco de minhoca e o hipercubo no passado deles, para permitir a Cooper viajar a outra galáxia, o que o permite mandar a mensagem para o passado. Achei isso bem ingenioso do Nolan, as viagens ao tempo uma dentro da outra e todas de modo consistente.

Não obstante, qualquer tipo de viagem no tempo, seja pessoal ou apenas a transmissão de informação, parece ser contrária ao que a relatividade geral sugere como possível. No entanto existem diversas soluções das equações de Einstein que permitem tais laços temporais e a transmissão de informação é certamente menos nociva que algo viajar para o passado propriamente, de modo que embora extremamente especulativo, e provavelmente proibido pela física, é algo que podemos desconsiderar como flagrantemente absurdo no contexto da ficção.

Resumo

“Interestelar” começou com a promessa de ser cientificamente plausível. A menos dos problemas de engenharia no transporte interplanetário e de personagens sabendo mais do que deveriam, e os detalhes da transmissão de informação ao passado, acho que conseguiu atingir o objetivo de ser cientificamente plausível no contexto da ficção. Muitas partes de sua ciência são obviamente especulativas, como dimensões extras, mas em geral ela navega para longe do obviamente absurdo, embora tal trajetória a leve para longe do obviamente possível.

Me perguntaram se o filme cumpria o propósito de instigar a curiosidade científica das pessoas. Acredito que sim, no que tange o fato de que para ver que a ciência é plausível se faz necessário procurar o que é possível e não só o que é provável. Para um melhor entendimento de toda a ciência do filme não tem lugar melhor que o bom livro do Kip Thorne, “The Science of Interstellar”.